sábado, 25 de janeiro de 2014

"a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros"



" (...) e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra com a ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva (...) ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação. (...)"
Raduan Nassar
Lavoura Arcaica (1999) Relógio d'Água, p. 31

Raduan Nassar (n.1935) é um escritor brasileiro de origem síria e libanesa. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo e publicou, entre outras obras, Lavoura arcaica (1975) Um copo de cólera (1978) e Menina a caminho (1994). Nassar terá deixado de escrever por volta de 1984 para se dedicar inteiramente à vida rural em Buri no estado de São Paulo. Apesar do número reduzido de livros publicados é considerando um dos mais importantes escritores da literatura brasileira do século XX, tendo sido galardoado, nomeadamente, pela Academia Brasileira de Letras com o Prémio Coelho Neto. Depois de ter dedicado grande parte da sua vida à criação de gado e ao cultivo de arroz, aveia, soja e trigo, Nassar decide em 2011 doar parte da sua fazenda a particulares e outra parte à Universidade Federal de São Carlos, com vista à criação de cursos de Agronomia, Engenharia Florestal, etc.